quinta-feira, 23 de maio de 2019

CARTA DE FORTALEZA EM DEFESA DA SEGURIDADE E DO PACTO SOCIAL DE 1988

Seminário Reforma da Previdência: Um Contraponto Necessário


A Frente Cearense em Defesa da Seguridade Social, entidade que congrega dezenas de instituições em torno desta tão importante causa social, ora fortalecida pelas brilhantes explanações dos palestrantes no Seminário “Reforma da Previdência: Um Contraponto Necessário”, ocorrido neste histórico 22/03/2019, em Fortaleza, na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, vem expor sua posição em relação à proposta de reforma da Previdência do Governo Bolsonaro - PEC 6/2019, que altera amplamente a estrutura da Seguridade Social brasileira, afetando direitos sociais e demais garantias dos trabalhadores do serviço público e da iniciativa privada consagrados pela Constituição Federal de 1988, num verdadeiro retrocesso social de difícil recuperação. Em última instância, o propósito não manifesto é enterrar o pacto social de 1988, construído ao longo de duas décadas pelas forças políticas que lutaram contra a ditadura civil e militar (1964/1985).

A proposta apresentada se fundamenta na falsa premissa de um iminente colapso financeiro do sistema previdenciário por conta do envelhecimento da população e está estruturada sobretudo nos seguintes pilares:

1. Exclui da Constituição Federal regras gerais de natureza previdenciária, possibilitando sua alteração mediante legislação infraconstitucional, que são mais fáceis de serem aprovadas no Congresso Nacional: enquanto uma Emenda Constitucional exige o apoio de 308 deputados e 49 senadores, em duas votações em cada Casa, uma legislação complementar demanda 257 votos de deputados, em duas votações, e 41 de senadores, em uma votação. Não é improvável que, após a aprovação dessas leis, muitas das regras atuais poderão ser mudadas por atos normativos do Executivo e mesmo por Medidas Provisórias.

2. Acaba com a Seguridade Social consagrada na Carta de 1988, transitando para o assistencialismo, pois dificilmente o trabalhador brasileiro terá condições de ter acesso à proteção previdenciária e tentará migrar para a proteção assistencial, rebaixada para um benefício de R$ 400,00. Isso fica claro pela alteração das regras de concessão subtraindo direitos adquiridos, aumentando alíquotas com efeitos confiscatórios, aumentando idades mínimas e aumentando tempos de contribuição, ao tempo em que reduz o valor dos benefícios previdenciários e assistenciais, mudando as regras de cálculo, restringindo as hipóteses de acumulação de aposentadorias e pensões, e diminuindo a pensão por morte e a aposentadoria por invalidez. Além disso, pela “segregação contábil”, desintegra a Seguridade Social, separando contabilmente a Previdência, a Assistência Social e a Saúde.

3. Acaba com a Seguridade Social, transitando para o Seguro Social, pois cria o sistema de capitalização, destruindo o atual modelo solidário de repartição e, ainda, faculta a substituição de entidades de previdência complementar fechadas por entidades de previdência abertas.

4. Confere aos entes federados a fixação de contribuições extraordinárias para cobrir déficits atuariais.

5. Ignora as regras de transição previstas nas emendas constitucionais de 1998, 2003 e de 2005.

O resultado esperado desse desmonte do Estado de Bem-estar duramente conquistado em 1988 é o desastre social e econômico, percebido pela destituição em massa de idosos que não terão proteção na
velhice.

Para justificar esse conjunto de medidas de retirada de direitos, os defensores da reforma proclamam à sociedade o “déficit” e o iminente colapso do sistema previdenciário público, uma falsa argumentação que tem sido contestada ano após ano, por estudos e pesquisas, em especial aqueles conduzidos pela ANFIP e pela Associação Auditoria Cidadã da Dívida, além das claras conclusões da CPI do Senado Federal, em 2017.

Ainda, induzem a população à conclusão de que servidores públicos mais antigos pagam menos ao sistema previdenciário, ignorando que já contribuem, desde 1993, sob a máxima alíquota incidindo sobre todos os seus rendimentos, mantendo-se tal contribuição inclusive na inatividade.

Os reformistas desconsideram também que a Previdência Social, assim como a Saúde e a Assistência Social, está inserida na Seguridade Social, cujo financiamento tem caráter tripartite: empregados,  empregadores e governo, por meio de tributos pagos pela sociedade, como é o caso da CSLL, da Cofins e do Pis-pasep, por exemplo.

Nesse sentido, os reformistas desconsideram que os supostos “déficits” são efeitos, sobretudo, dos desvios dos recursos que, constitucionalmente, estão vinculados exclusivamente à Seguridade Social,
como rezam os Artigos 194 e 195. O suposto “déficit” também decorre das isenções tributárias concedidas pela área econômica sobre as contribuições sociais que financiam a Seguridade, bem como pela DRU que captura outros 30% dessas receitas. 

Tais déficits de origem fiscal revelam-se, portanto, como a origem do desequilíbrio financeiro que precisa ser enfrentado e que decorre do baixo crescimento econômico e das inconsistências do regime
macroeconômico brasileiro, marcado por juros reais elevados na comparação internacional e que estão na origem da estagnação da atividade e do aumento da dívida pública, que sangra e compromete a maior parte do Orçamento Fiscal.

E este deliberado desequilíbrio fiscal, que tem sido enfrentado apenas pela redução do papel do Estado, não tem levado os governos sequer à necessária discussão sobre o regressivo sistema tributário brasileiro, cujas distorções promovem desigualdades, desequilíbrio no pacto federativo e injustiça fiscal, com uma carga tributária mais pesada sobre salários e sobre o consumo, enquanto deveria pesar mais sobre o patrimônio e a renda do capital, e ainda poderia induzir o desenvolvimento econômico.

Outra questão que tem sido repetida quase como um mantra pelos interlocutores do mercado financeiro para impor a reforma previdenciária é a elevação da expectativa de vida da população, que não é uniforme no território nacional, de modo a condenar uma significativa parcela da população a nunca se aposentar, pois morrerão antes da idade mínima estabelecida. Desconsideram que o Brasil, além de ser o 9o país mais desigual do mundo, é um país extremamente heterogêneo do ponto de vista regional. 

Dados do PNUD mostram que 65% dos municípios brasileiros têm Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 4 semelhante aos verificados nos países africanos.

Associe-se tal fato à exigência de 40 anos de contribuição para se atingir o valor integral dos benefícios, de modo desumano e inviável para a maior parte da população, com efeitos mais nefastos sobre os trabalhadores informais, os de baixa renda, os desempregados, os trabalhadores nas atividades mais penosas. Mais de 40% dos brasileiros não consegue comprovar sequer 20 anos de contribuição, que passarão a ser exigidos para o acesso a aposentadoria parcial cujo valor representa 60% da média de todas as contribuições realizadas desde 1994.

É o fim da proteção previdenciária! É o fim da aposentadoria para milhões de brasileiros!

Observando que os principais argumentos em defesa da reforma não subsistem diante de análises mais criteriosas, podemos concluir que o verdadeiro motivo da reforma não está explícito nos discursos. A captura dos recursos da Seguridade e a conversão da previdência em um sistema de capitalização individual parece ser a verdadeira razão para tanto empenho. Quando dizem que o mercado está sedento pela aprovação da reforma é um claro sinal de que a previdência está sendo vista como um negócio lucrativo. Converter o modelo de repartição em um modelo de capitalização individual significa revogar a previdência pública como um dos principais direitos previstos na Constituição Federal. Trata-se de
algo intangível para a maior parte dos trabalhadores brasileiros, que terão de viver com o
assistencialismo de R$ 400,00 por mês.

De fato, essa conversão transforma um direito social em um negócio individual, uma mercadoria. Significará colocar o futuro das pessoas nas mãos do sistema financeiro. Um modelo que foi implementado em vários países e não funcionou; a maioria dos que o experimentou já retornou à previdência pública. No Chile temos um exemplo deste claro fracasso. Implementado na década de 1970, na ditadura de Pinochet, o sistema serviu apenas para enriquecer alguns fundos privados de previdência e jogar na miséria grande parte da população. Mesmo no Brasil, inclusive aqui no Ceará, não faltam exemplos de fundos de previdência privada que faliram e deixaram os beneficiários literalmente na mão.

Devemos observar, portanto, que a reforma da previdência não é uma questão matemática como tentam fazer parecer de forma simplória. É uma questão essencialmente política que envolve diretamente a escolha por um modelo de sociedade e de Estado. A sustentabilidade financeira do sistema previdenciário por conta da transição demográfica é argumento de fácil compreensão, mas falso, pois não é determinante para quem defende a reforma. O que está em curso é a proposital destruição do Estado de Bem-estar. Como vimos acima, a suposta “crise fiscal” que “justificaria” tal destruição, é o fruto desejado de uma política deliberada de privilegiar os gastos em favor do sistema financeiro, sufocando a economia, os gastos sociais e o papel do Estado, alimentando um ciclo pernicioso que aprofunda nossas desigualdades. O propósito implícito é implantar o Estado mínimo, marcado por um assistencialismo barato e privatização da previdência, da saúde, da educação, do saneamento e dos transportes públicos. Ao contrário do Estado de Bem-estar, o Estado mínimo existe para garantir os negócios, não os direitos.

Assim, a PEC no 6/19, associada aos retrocessos da recente Reforma Trabalhista e do Teto de Gastos, atingirá toda a classe trabalhadora, sejam servidores públicos ou da iniciativa privada, com potencial mais lesivo sobre as mulheres e aqueles mais vulneráveis social e economicamente, como os trabalhadores rurais, os idosos, os de baixa renda e as pessoas com deficiência, destruindo direitos existentes e, de forma preocupante, ameaçando as gerações futuras. Ela também atingirá a maior parte dos municípios brasileiros, que dependem da circulação dos recursos oriundos dos benefícios
previdenciários e assistenciais.

A Frente Cearense, diante de tais distorções e falsos argumentos, avalia que não há como iniciar qualquer reforma ou debate sobre retirada de direitos e garantias consignados na Constituição Federal antes de se promover, mediante uma democrática discussão com o conjunto da sociedade, as seguintes ações:

➢ Reforma tributária de caráter solidário, que promova a progressividade na tributação e o desenvolvimento econômico, distribua justamente a carga tributária, reduza a desigualdade social no Brasil, aumente a tributação direta e alivie o sistema produtivo, que restabeleça as bases do equilíbrio federativo e aumente as receitas pela revisão das renúncias e um maior controle da sonegação e da evasão fiscal.

➢ Auditoria da dívida pública e enfrentamento dos esquemas de securitização de créditos.

➢ Revisão da política monetária de juros excessivos e de aceitação e remuneração das sobras de caixa dos bancos (1,2 trilhão gerando dívida pública e alimentando os juros e a crise).

➢ Combate eficaz às fraudes na Seguridade Social e cobrança eficaz dos devedores à Previdência.

➢ A revogação da recente reforma trabalhista, que precariza as relações de trabalho, dificulta o acesso aos direitos previdenciários e “quebra”, financeiramente, a previdência social.

➢ A revogação da emenda constitucional de Teto de Gastos.

➢ Adoção de políticas econômicas que promovam o crescimento – e, por consequência, a geração de emprego, renda, faturamento e lucros – ampliando as receitas da Seguridade Social e garantindo a sustentabilidade do sistema previdenciário.

O adequado enfrentamento das questões acima elencadas resultaria, naturalmente, no caminho da desejada reconstrução de um Brasil solidário, justo, fraterno, fundamentado na dignidade da pessoa humana e sob o objetivo do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza e da marginalização, da redução das desigualdades sociais e regionais, e da promoção do bem de todos (Constituição Federal, arts. 1o e 3o).

Tal proposta de emenda à Constituição exige, portanto, reação proporcional à destruição que pretende
promover no Sistema de Proteção Social no Brasil. Assim, as entidades integrantes da Frente Cearense em Defesa da Seguridade Social, em conjunto com os ilustres palestrantes deste histórico seminário, REJEITAM o INTEIRO TEOR da PEC no 06/2019, em virtude da sua perversidade e do seu conteúdo destrutivo, e conclamam todos os cidadãos e cidadãs a reagir, resistir e lutar como TRABALHADORES e TRABALHADORAS que somos, em defesa da Previdência Pública e da Seguridade Social como um todo. Vamos à luta!

Fortaleza, 22 de março de 2019.

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